SAÚDE: Coração, Cérebro e Pulmão: como a Covid-19 afeta nossos órgãos vitais
Rosângela dá Crüz
Terapeuta e Acupunturista
Ac. de Farmácia
Principais alvos da covid-19 são o pulmão e as vias respiratórias, mas o vírus tem surpreendido
por seu variado ataque, do cérebro aos rins. Em um ano, o coronavírus mostrou causar muito
mais do que uma doença respiratória, ele afeta diferentes partes do corpo por uma mistura de
ataque direto as células, alterações na circulação de sangue e uma reação inflamatória
exagerada, embora ainda haja muitas perguntas em aberto sobre o coronavírus, que parou o
mundo há quase um ano, cientistas conseguiram neste período correr contra o tempo e trazer
muitas respostas sobre a nova doença — algumas delas surpreendentes - Por exemplo, a de que
a covid-19, descrita desde o início como uma doença respiratória, não ataca apenas os pulmões.
Conforme o coronavírus foi se espalhando pelo mundo e adoecendo mais pessoas — até aqui,
infectando pelo menos 88 milhões no planeta, médicos e pesquisadores começaram a constatar
que órgãos tão diferentes como coração, cérebro e rins também podiam ser afetados, às vezes
fatalmente, pelo coronavírus. O patógeno também já causou problemas em dedo dos pés, foi
detectado no testículo e ainda nas lágrimas de pacientes, em relação aos chamados órgãos
vitais, porém, a doença tem gerado incógnitas, pesquisas científicas e, em alguns casos, grande
preocupação. A comunidade científica e pesquisadores brasileiros, estudam incessantemente
para descobrir, sobre as consequências da covid-19 em cinco órgãos fundamentais para a nossa
sobrevivência: Pulmões, Coração, Rins, Fígado e o Cérebro, vale lembrar que a definição de quais
são os órgãos vitais é variada, mas de acordo com o entrevistados, estes cinco estão mais perto
de um consenso de serem fundamentais para a continuidade da vida e insubstituíveis,
considerando as intervenções médicas existentes
1 - Pulmões
Apesar de afetar outras partes do corpo, ainda são "as vias respiratórias e os pulmões" os
principais alvos da covid-19, lembra a pesquisadora Marisa Dolhnikoff, professora associada da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenadora dos Estudos em
Autópsia da Covid-19 no Hospital das Clínicas da faculdade. Tudo começa quando uma pessoa
sadia entra em contato com gotículas do vírus, como através da tosse ou espirro de alguém
infectado, ou ainda por meio do contato com uma superfície contaminada com essas partículas.
A partir daí, o vírus começa a "hackear" as células das vias respiratórias (canais que conduzem o ar aos pulmões, como o nariz e a traqueia) e dos pulmões, transformando-as em fábricas de
coronavírus que se espalham por mais células. Tosse, coriza e espirros podem surgir por conta do
ataque às vias respiratórias, esses sintomas também podem ser reflexo do acometimento dos
pulmões — mas, segundo Dolhnikoff, o sinal mais claro de que este órgão vital foi afetado é a
falta de ar. Um estudo publicado em junho na revista científica Lancet, com dados de 257
pacientes em Nova York (EUA), mostrou que a falta de ar foi o sintoma mais frequente na
entrada no hospital, registrado em 74% dos infectados, seguido por febre (71%) e tosse (66%).
Ainda segundo a pesquisadora da USP, um outro sinal importante vem das tomografias —
quando elas mostram mais de 50% da área dos pulmões acometida pelo coronavírus, este é um
indicador de gravidade e de insuficiência respiratória, que demanda suporte como a ventilação
mecânica, ambos pulmões costumam ser afetados juntos, tanto nas vias respiratórias quanto nos
pulmões, o coronavírus encontra um facilitador células contendo receptores da proteína ECA-2,
uma espécie de chave que permite o início da infecção. "Nos casos mais graves, há também
infecção dos alvéolos, estruturas responsáveis pela troca gasosa nos pulmões — a captação de
O2 do ar para o sangue, e liberação de CO2". É por isso que os pulmões são vitais, eles nos dão,
literalmente, o ar que respiramos, o órgão absorve o oxigênio externo e o distribui para todo o
corpo através do sangue e, na via contrária, recolhe o gás carbônico dispensado após vários
processos dentro do corpo, quando infectadas, as células dos alvéolos sofrem alterações
importantes que levam à sua morte, desencadeando um processo de inflamação e edema
pulmonar (excesso de líquido) que impedem as trocas gasosas, culminando com a insuficiência
respiratória, completa Dolhnikoff, cuja equipe no Hospital das Clínicas está realizando desde o
início da pandemia um método inovador de autópsias minimamente invasivas, de forma a evitar
o contágio no contato com corpos, para fins de pesquisa. Além da infecção das células das vias
respiratórias e dos alvéolos, em uma segunda frente, os vasos sanguíneos também são atacados.
Isso leva ao aumento da coagulação e à formação de trombos (conjunto de sangue coagulado),
que dificultam a passagem de sangue nos alvéolos, com isso, as trocas gasosas são mais uma vez
comprometidas, ainda no início da pandemia, em abril, a equipe que está trabalhando com
autópsias na USP publicou no periódico científico Journal of Thrombosis and Haemostasis os
resultados destas análises em dez pacientes, demonstrando alvéolos amplamente danificados e
pequenos trombos no pulmão — cuja formação devido à covid-19 era pouco conhecida naquele
momento. Quando o quadro pulmonar é muito grave, incluindo um conjunto de indicadores
como a insuficiência respiratória e a inflamação sistêmica, ele pode configurar a síndrome do
desconforto respiratório aguda (ARDS, na sigla em inglês).
2 - Coração
Se os pulmões realizam as trocas gasosas, é o coração que bombeia o sangue com oxigênio para
o corpo e que volta para os pulmões com sangue repleto de gás carbônico, e nos quadros mais
graves, este órgão muscular e vital é significativamente afetado podendo levar a óbito. Um
estudo de referência, publicado em fevereiro de 2020 com dados de 138 pacientes hospitalizados
em Wuhan, mostrou que 16,7% deles desenvolveram arritmia e 7,2% lesão cardíaca aguda, ou
seja, dois problemas de saúde atingindo o coração, aqueles que precisaram ir para uma Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) apresentaram estes quadros com mais frequência. "Na covid-19, o
coração pode ser atingido em até 40% dos casos graves", aponta Marisa Dolhnikoff,
acrescentando outras consequências da covid-19 no coração como a miocardite (inflamação no
coração), tromboses arteriais e infarto do miocárdio. "Pessoas com comorbidades — diabetes,
hipertensão, obesidade e cardiopatias prévias — têm maior risco de manifestação cardíaca na
covid-19." Estudos de várias partes do mundo mostram problemas no coração como uma das
comorbidades mais comuns entre pacientes graves infectados, o Ministério da Saúde de dezembro revelou que, no Brasil, as cardiopatias (doenças no coração) foram o fator de risco
mais frequente entre pessoas que morreram por covid-19 no país, seguidas por diabetes.
Dolhnikoff explica que as células cardíacas também têm receptores da proteína ECA-2, ativadas
no ataque direto do vírus ao órgão, mas o órgão pode ser afetado também pela inflamação
sistêmica, reação exagerada do corpo que leva a diversas alterações prejudiciais como a baixa de
oxigênio e à chamada tempestade de citocinas, substâncias agressivas que o sistema
imunológico libera para atacar um invasor, mas que, em excesso, podem acabar atacando partes
vitais para nossa sobrevivência, como o coração. A partir da autópsia e de exames referentes ao
caso de uma menina de 11 anos que perdeu a vida para a covid-19, Dolhnikoff e sua equipe
conseguiram demonstrar o ataque do vírus a diversas células do coração, nas quais foram
encontradas partículas do vírus. A resposta inflamatória agravou o problema, levando à falência
cardíaca e morte, o pulmão da criança também foi afetado, mas os cientistas identificaram o
coração como o órgão mais comprometido pelo vírus. Os resultados foram publicados no
periódico internacional Lancet Child & Adolescent Health.
3 - Rins
Assim como acontece com o coração, quando os rins são afetados pela covid-19, o nível de alerta
é aumentado. "A lesão renal é incremental, compõe o quadro de um doente mais complexo,
são doentes muito graves, quando a doença é avassaladora, ela é avassaladora", resume o
nefrologista José Suassuna, chefe do Setor de Nefrologia do Hospital Pedro Ernesto, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Hupe/Uerj). Os rins são vitais por regularem a
concentração de água no sangue e por eliminarem detritos tóxicos do corpo. "Grupos de risco
como obesos, diabéticos, pessoas com doenças cardiovasculares e idosos muitas vezes já têm
algum grau de comprometimento renal, então, quando infectados pelo coronavírus, não partem
do 0. Eles já estão na metade do caminho e caminham mais rapidamente para a insuficiência
renal aguda e para a necessidade de suporte", explica Suassuna, destacando porém que há casos
em que o paciente não tem fatores de risco mas tem os rins comprometidos. De acordo com o
nefrologista, os rins também têm receptores ECA-2, mas as evidências até agora indicam que
possivelmente não é este ataque direto do vírus ao órgão o principal motivo de acometimento
dos rins, mais uma vez, a inflamação exacerbada do corpo ao coronavírus parece ter um papel
importante, uma evidência disso é a conexão entre os pulmões e o rins, a chamada cross talk
entre os órgãos. "É uma ligação cruzada, a situação em que o acometimento de um órgão
determina o de outro. Na covid-19, isso tem se mostrando entre rins e pulmões, assim como
pulmões e coração. O envolvimento pulmonar mais grave se associa a um risco muito maior para
os rins. Há uma associação grande entre entubar e a insuficiência renal", aponta Suassuna,
explicando que quando há esta insuficiência nos rins, o paciente deixa de urinar, precisando de
suporte, além disso, outra explicação para o acometimento simultâneo de vários órgãos na fase
mais avançada da infecção é a baixa oxigenação. "A covid-19 nos deixa com uma oxigenação
como se estivéssemos subindo o Himalaia, mesmo estando a nível do mar, uma parte funcional
do rim, que ajuda a produzir a urina, já vive como se estivesse no Everest — no que a gente
chama de hipoxia, uma oxigenação muito baixa", diz o médico, também professor da UERJ. "O
rim é um órgão muito sensível às quedas de oxigenação prolongadas porque já vive na beira do
precipício, e à piora da oxigenação se soma a tempestade de citocinas, um mecanismo
importante da disseminação do dano da covid do pulmão para o resto do corpo." Apesar de seu
adoecimento ser um indicador de gravidade, os rins também podem ser afetados em casos mais
leves. Entretanto, talvez isso nunca se manifeste em sintomas, mas apenas exames específicos
de urina e de alteração da função renal. "Os rins, em qualquer doença, sofrem em silêncio — e
covid-19 não é uma exceção", esse órgão é afetado bilateralmente, ou seja, adoece tanto do lado
esquerdo quando direito. "Não tem grande manifestação de sintomas, a maior parte dos sinais
só aparece no laboratório. Temos pacientes iniciando diálise que não sentem nada, apenas
quando já têm menos 10% da função renal. De repente, param de urinar."
4 - Figado
Exames também já detectaram, em alguns pacientes, alterações no fígado, que tem entre suas
funções eliminar toxinas do corpo, regular o açúcar no sangue e ajudar na digestão de gorduras.
Entretanto, diferente de outros órgãos, tais alterações não necessariamente significam o
adoecimento do órgão, "As enzimas hepáticas (substâncias produzidas pelo órgão) estão
elevadas em cerca de 15 a 60% dos casos de COVID-19, o que sugere acometimento do fígado.
Porém, estas alterações das enzimas em geral não provocam sintomas", explica o hepatologista
Edmundo Lopes, médico do Hospital das Clínicas e professor da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), "Apesar destes distintos mecanismos de agressão ao fígado durante a
covid-19, ele não é comumente nem intensamente comprometido, como ocorre com outros
órgãos, como os pulmões, o coração e os rins", diz. "As explicações para esta 'menor' agressão ao
fígado ainda não estão bem elucidadas." Os distintos mecanismos de agressão mencionados
por Lopes passam, mais uma vez, pelos efeitos da inflamatória sistêmica no corpo e também, no
caso desse órgão responsável por lidar com substâncias potencialmente tóxicas, por eventuais
danos provocados pelos medicamentos usados contra a covid-19, a ação direta do vírus sobre o
órgão também é uma possibilidade, até porque as células hepáticas chamadas de colangiócitos
têm receptores ECA-2, entretanto, segundo o professor da UFPE, essa via direta, nunca foi muito
bem demonstrada na ciência. "As evidências sugerem que o processo inflamatório (tempestade
de citocinas) parece ter um papel relevante na agressão ao fígado, já que os pacientes mais
graves e que apresentam maiores indícios de atividade inflamatória nos exames laboratoriais são
os que apresentam mais frequentemente e mais intensamente alterações das enzimas hepática".
5 - Cérebro
Se tem um órgão que os entrevistados dizem estar rodeado de incógnitas sobre seu
acometimento pela covid-19, é o cérebro, fato é que diversos estudos e relatos de casos já
mostraram que ele pode ser afetado, dos quadros leves aos graves. A pesquisadora Clarissa
Yasuda, médica e professora do departamento de neurologia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), que o diga: ela mesma teve covid-19 em agosto e conta ainda sentir
consequências relacionadas ao cérebro, como sono, fadiga e alterações na memória, ela e
colegas publicaram em outubro um estudo em estágio pré-print (sem a chamada revisão dos
pares, etapa padrão em que outros especialistas analisam um estudo e decidem se ele será
publicado ou não em uma revista científica) com dados sobre 81 pessoas que tiveram covid-19
leve e se recuperaram. Esses voluntários foram submetidos a exames de ressonância magnética,
que detectaram alterações no córtex, a parte mais externa do cérebro e fundamental para
processos envolvendo a memória, linguagem, entre outros, questionários e testes cognitivos
também mostraram que, em média 60 dias após o diagnóstico da covid-19, os pacientes ainda
apresentavam dor de cabeça (40%), fadiga (40%), alteração de memória (30%), ansiedade (28%),
depressão (20%), perda de olfato (28%) e paladar (16%), entre outros. Aliás, Yasuda lembra que
a perda destes sentidos é considerada pelos especialistas um sintoma neurológico, precisamos
do cérebro para sentir gostos e cheiros. "Acho que não estava na conta de ninguém imaginar
que pessoas que não foram internadas, que seriam quadros 'leves', pudessem ficar com uma
gama de alterações neurológicas incapacitantes, como observamos não só aqui mas no mundo
inteiro", diz a neurologista, fazendo a ressalva de que o grupo de voluntários estudados formado por pessoas que já estavam relatando sintomas neurológicos, então há uma inclinação
de que estes sejam mais frequentemente registrados do que se o estudo envolvesse uma
população mais ampla. "Além desses casos leves (que estão mostrando consequências
prolongadas), há o grupo de alterações neurológicas por covid-19 que surgem na fase aguda e
que podem ser bem graves, como derrame, encefalite, convulsão e redução do nível de
consciência, em alguns casos, os derrames aumentam a chance de AVC (acidente vascular
cerebral), não sabemos se estes efeitos serão transitórios ou se deixarão sequelas." Parte da
equipe que está trabalhando com autópsias no Hospital das Clínicas da FMUSP, o médico Amaro
Nunes Duarte Neto relata que uma alteração muito comum observada nos cérebros de pessoas
que morreram após a infecção pelo coronavírus é a lesão dos neurônios. "São lesões cerebrais
decorrentes da hipóxia (oxigenação diminuída) pelo acometimento pulmonar grave na covid-19,
não atribuídas diretamente ao vírus", explica os pesquisadores, isto porque, como em outros
órgãos, os efeitos da covid-19 não necessariamente ocorrem devido ao ataque direto do
coronavírus, mas sim pelas consequências da resposta inflamatória do corpo e de alterações na
circulação do sangue, entre outros. Pesquisadores relatam também a observação, nas autópsias,
de microsangramentos nos vasos que irrigam o órgão, além da hipertrofia dos astrócitos —
células em torno dos vasos cerebrais e que dão suporte fundamental para os neurônios
minimamente invasivas, dizem os pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da
USP. Mesmo que nem todo efeito neurológico do coronavírus seja atribuído ao seu ataque
direto, os pesquisadores entrevistados dizem que há sinais de que o patógeno chega até o
cérebro através do nariz, pelo mesmo caminho que um aroma "faz" para chegar até lá. Ainda
assim, "o conhecimento sobre o mecanismo de lesão do vírus Sars-CoV-2 no sistema nervoso
central ainda é pouco esclarecido", diz o pesquisador da USP. ‘Uma muita coisa que a gente não
sabe, há muita coisa para ser estudada: o quanto desses quadros neurológicos tem um
componente inflamatório, o quanto é autoimune, o quanto é um ataque direto do vírus.
Ninguém tem uma resposta, mas acho que é uma combinação disso tudo."
REFERÊNCIAS:
1 – br.noticias.yahoo.com (BBC News Brasil )