Infância negligenciada
*Silvio Cunha
A condução de duas crianças com idade entre 8 a 10 anos em um camburão, com as mãos amarradas, para a delegacia central de polícia de Caxias, na manhã de sexta-feira, 8, por uma patrulha da PMMA, foi, sem dúvida, o fato que alcançou maior repercussão no município, durante a semana, ganhou amplitude estadual e atingiu o ápice ao ser veiculado pelos meios de comunicação nacional e redes sociais.
De imediato, a exemplo do que vem ocorrendo ultimamente, as críticas, em sua grande maioria, se concentraram na atuação dos policiais militares, apontando-os como insensíveis e infratores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em razão de terem optado por transladar os menores a uma delegacia de polícia, quando o certo, no entender de muita gente inclusive do meio jurídico, seria deixá-los sob o cuidados dos pais ou mesmo em uma agência do Conselho Tutelar.
Sem melhor avaliação do caso e agindo em consonância à forma como vem sendo abordados os mais diversos problemas de nossa sociedade atualmente, a maioria de nossos comentaristas e replicadores de notícias colocou logo em evidência o que consideraram uma truculenta ação de policiais do 2º BPM, sediado em Caxias sob o comando do tenente-coronel Márcio Silva. Pressionado, o comandante não teve dúvidas de seguir o manual da corporação e, de pronto, mandou instaurar inquérito administrativo, afastando os policiais envolvidos de suas funções, como é de praxe. No âmbito do estadual, o Secretário de Estado de Direitos Humanos foi mais além, pedindo a exclusão dos PMs do quadro da corporação.
Mas, à medida que a ação começou a ser apurada, com audiências na delegacia de polícia, defensoria pública e ministério público, a verdadeira face do problema começou a ser revelada para a opinião pública. Primeiro, imagens ilegais gravadas em celular mostraram que os dois meninos não foram amarrados pelos policiais, mas pela própria pessoa que os flagrou escondidos debaixo de uma cama localizada em uma casa da rua da Primavera, no bairro Seriema.
José Ivan Loura do Carmo Albuquerque, 35 anos, morador da mesma rua, irmão da proprietária da casa onde as crianças se achavam, que voluntariamente se apresentou à central da Polícia Civil de Caxias para depor, confessou que ele próprio, juntamente com o cidadão conhecido como Zé Leão, foram os responsáveis por amarrarem os dois garotos. Em sua justificativa, explicou que ele mesmo foi quem pediu a presença da polícia, pois temia que as crianças acabassem agredidas por pessoas agitadas com a notícia de que ladrões haviam invadido a residência e queriam fazer justiça. O depoente explicou que, formada a situação dramática, se os policiais não tivessem agido, certamente os dois garotos teriam sido agredidos. Corroborou para sua decisão o fato de que as crianças, ao saberem que a polícia logo estaria presente, queriam sair da casa a todo custo e isso poderia provocar ira muito maior à turba que estava no local, com consequências imprevisíveis à segurança física dos menores.
Noutras imagens ilegais captadas também por aparelho celular, a população assistiu ao momento em que os dois meninos chegavam à delegacia central, na praça Panteon. São imagens que, à luz da nossa constituição, jamais poderiam ser mostradas, uma vez que esta proíbe terminantemente a difusão de imagens de crianças envolvidas em qualquer tipo de ilícito. Não importa se a premissa é certa ou errada. Trata-se do posicionamento da lei em vigor no país. Contudo, as imagens são elucidativas em mostrar que os policiais pareciam cuidadosos em trazer as crianças, sem o menor vestígio de violência, ainda que amarradas, do jeito que as encontraram no momento do resgate.
Embora o caso ainda esteja sob investigação, é razoável supor que os policiais agiram prontamente e evitaram que os dois menores sofressem agressões. O comandante do 2º BPM revelou em entrevista que os policiais tiveram dificuldades em deixar os menores na sede do Conselho Tutelar, localizada no centro da cidade. Que tipo de dificuldades, não foi ainda possível esclarecer, mas há referência de que um conselheiro do órgão acompanhou pessoalmente todo o caso. Outro dado relevante é que a casa dos menores está localizada nas imediações do flagrante, situação que também colocaria as crianças em risco, se deixadas sob as ameaças da turba que seguia de perto a viatura policial.
O assunto, óbvio, foi abordado na sessão da Câmara Municipal, segunda-feira, 11. Usando o pequeno expediente, o segundo secretário da Mesa Diretora, vereador Sargento Moisés (PSB), egresso dos quadros da polícia militar, disse que um caso isolado como aquele não poderia ser utilizado para macular a história secular da Polícia Militar do Maranhão, que se mostra preparada e tem correspondido a todas expectativas de segurança em prol da população. Para o vereador, há exagero em seguir um raciocínio que leve à exclusão dos policiais envolvidos no caso.
Participando da discussão, o presidente da Câmara, vereador Catulé (PRB), disse em plenário que, ainda que todas as questões e desculpas sejam esclarecidas, nada poderá apagar a triste imagem oferecida pelos policiais a todo o país, que colocaram mais uma vez o município de Caxias em posição vexatória. Na sua opinião, é um atenuante o fato de que os policiais eram novatos e, portanto, inexperientes, para cuidar de situação tão delicada. Para Catulé, os meninos teriam que ser imediatamente deixados pelos PMs na casa dos pais.
Quanto à informação de que as duas crianças tinham saído de casa para trabalhar cuidando de animais, com autorização dos pais, medida que contraria frontalmente o ECA, argumentou que, mesmo sendo uma violência contra crianças que deveriam estar na escola, a conduta é muito comum, não só em nossa região, mas também por todo o interior do Estado. No entender do vereador, as autoridades judiciais, assim como a OAB/MA, estão plenas no direito de esclarecer rigorosamente o caso, doa a quem doer, sem a menor chance de impunidade. “O que não podemos concordar é que essas crianças paguem ainda um preço muito maior do que ter seus rostos revelados para toda sociedade, marca que deverá as acompanhar pelo resto de suas vidas”, argumentou.
Enquanto as autoridades se empenham em reuniões buscando esclarecer os fatos, e isso vai continuar ocorrendo nos próximos dias, tem-se a impressão de que o caso caminha pela busca de culpados, posto que são mais do que evidentes as falhas perpetradas por diversos atores que não aparecem nem apareceram diante das câmeras.
Talvez sob influência de pessoas interessadas em tirar proveito da situação, familiares dos menores teriam ficado indignados com a divulgação das imagens e agora creditam ao Governo do Estado toda a responsabilidade pela repercussão do caso. Tem advogado que acha que a família deve pedir indenização pela exposição das crianças, as quais, em verdade, são as vítimas maiores de toda uma conjuntura existencial que as faz envelhecer precocemente, e logo muito cedo batalhar pela sobrevivência, mesmo que as opções que se apresentem não sejam as mais desejadas ou legais.
Na última terça-feira, 12, por volta de meio-dia, o pequeno Daniel, de apenas três anos, que estava desaparecido havia mais de 30 horas nas matas do povoado Caxirimbu, zona rural do município, finalmente foi resgatado com vida por um lavrador da região, Henrique Medeiros da Silva, aparentando de 35 a 40 anos de idade, que, incomodado com o desaparecimento da criança, deixou sua casa, situada cerca de sete quilômetros do local do achado, e juntou-se ao grupo de busca, formado por efetivos da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil. O lavrador disse que preferiu seguir para direção diferente das pessoas que também procuravam o menino, e foi assim que encontrou o pequeno Daniel.
Em sua concepção, se não tivesse sido encontrada naquele momento, por volta de 10 horas da manhã, a criança não resistiria. Segundo relatou, depois de ser homenageado na Câmara de Caxias pelo vereador Repórter Puliça (PRB), na última quarta-feira 13, ( receberá ainda diploma de menção honrosa em data a ser marcada) o pequeno Daniel estava deitado, com uma perna curvada e outra estirada, ralado e com moscas varejeiras nos lábios, em razão de babar por falta de água, e com um cipó na barriga. Quando ele se aproximou da criança, o menino levantou a cabeça e, sem força, deitou de novo. Quando o garoto pediu água, como Jurandir não tinha no momento,começou a gritar por socorro, sendo atendido rapidamente pela força tarefa que estava na operação de resgate.
Deixado com a avó idosa, que fazia lavagem de roupas e quebrava côco babaçu, o menino desapareceu subitamente sem deixar rastros, perdendo-se na densa mata da região. Não se sabe como o garoto conseguiu sobreviver, sem água, comida, sob chuva, além de não ter sido molestado por nenhum animal silvestre. Aparentemente bem, mas desidratado e com algumas marcas pelo corpo, possivelmente arranhões provocados pelo mato e pernilongos, foi trazido por aeronave do Comando Tático Aéreo da PMMA para o Hospital Macrorregional , afim de receber tratamento médico. Felizmente passa bem.
Por coincidência, no espaço de poucos dias, três crianças caxienses estiveram em graves apuros. É hora do nosso poder público tomar conta efetivamente desse tipo de situação, acionando todos os órgãos envolvidos com a problemática da infância e da adolescência. Não deve haver espaço para mais negligências, venham de onde vierem.
No Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte), casos como esses são gerenciados pelo Serviço de Assistência Social, o mais inflexível órgão público que existe naquela região da Europa. Lá, por influência decisiva do órgão, os pais inevitavelmente seriam presos e multados, por descuidarem dos filhos, e estariam propensos até mesmo a perder a guarda dos mesmos para sempre. Outros envolvidos, por ação direta ou indireta, também responderiam perante o juiz, com inapelável acesso a prisão.
*Silvio Cunha é jornalista, trabalha na Assessoria de Comunicação da CMC e assina coluna no Portal Noca